A PRIMEIRA ESCOLA, AINDA NA MATA
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Foto Hermógenes Neto / Escola Zona Rural Atual |
Mariana era bem pequena, sete anos; na
sua infância as crianças entravam na escola com essa idade. Não lembra se
a escola era feita de palha, madeira ou tijolo,
mas lembra-se que era pequena, uma sala só! Com certeza
era de madeira, matéria-prima farta e também muito resistente.
Tão resistente que ainda hoje encontramos escolas construídas de madeiras,
tanto nas cidades quanto nos seringais ou em colocações.
A professora também era uma só. Não lembra o
nome dela, que pena! Sua mãe dissera-lhe que o nome da professora era Alice.
Oh! Alice, sempre você, de tantas estórias! Não precisa nem dizer que era na
estrada, no aceiro da floresta, na zona rural. Sim, porque moravam na
floresta, numa colônia muito distante da cidade, alguns quilômetros da escola
rural, porém ela gostava muito de ir à aula. Era uma verdadeira aventura!
Como não podia ir sozinha, os pais a mandavam para
outra colônia, dois quilômetros longe, onde morava um tio seu com sua família:
Daniel, sua esposa Nilda e seus filhos. Para chegar na tal colônia dos tios, a
sua avó paterna Dona Noêmia, a levava por dentro da mata, ainda de dia. Esse
"passeio" durava algumas horas e era encantador, pois ouviam o canto
dos pássaros da floresta. Ela ficava encantada com o som da mata e o canto
mágico do Uirapuru, lindo demais! Um dia a avó falou-lhe que quem já ouviu o
canto desse pássaro teria só felicidade na vida. Será?! Elas iam caminhando e a
avó ia dizendo o nome dos pássaros que iam ouvindo e contando estórias sobre
eles e de outros bichos da floresta: jaguar, tatu, cobra... falava até dos
seres encantados como o Curupira e o Mapinguari e de outros seres mágicos da
floresta, ouvia lendas de índias guerreiras, estórias de feiticeiras, fadas
encantadas, homens maquiavélicos, moços heróis e gente do bem. Ela
escutava tudo com muito interesse e nem tinha medo. Aliás, só tinha medo
mesmo era quando seu pai, conversando com seus amigos, falava numa tal de
reforma agrária, ele dizia que quando ela viesse, iria destruir tudo! Fazendo
rico perder suas terras e que esses iam fazer de tudo para que ela nunca
viesse! Então, a menininha imaginava essa reforma como um monstro de várias
cabeças, enorme e muito feio e que tinha grande força e furor! Quando escutava
falar dela, à noite tinha muito medo, custava a dormir, já que seu pai falava
muito sobre isso, pois sonhava em ter um pedacinho de terra seu mesmo, para
plantar e para colher. Nessas noites, ela cobria-se dos pés à cabeça com medo da reforma agrária vir lhe pegar!
É que a criança leva ao pé da letra, tudo o
que o adulto fala e fantasia o que ouve. Por isso, não podemos conversar coisas
sérias na frente de crianças, pois nunca se sabe o que ela irá imaginar! O
tempo passou, a menina cresceu, seu pai faleceu e essa tal reforma agrária
nunca veio!
Ao chegarem na colônia dos seus tios, sua avó
voltava para casa e ela lá ficava, para no outro dia ir com seus primos à vila
onde ficava a escola. Eram vários primos e primas. Quando iam dormir eram
muitas as histórias que ouviam juntos: dos acontecimentos do dia, das
peraltices, das caçadas, das pescarias e até estórias de assombração. Então,
até a hora de dormir realmente era muita fantasia, imaginação e às vezes
uma risadagem só!
Antes de amanhecer o dia, no primeiro canto do
galo já estavam de pé. Tomavam o quebra-jejum (3) com leite
tirado da vaca. Suas primas arrumavam os lanches, com farofas de ovos, de
carne, de jabá, banana frita e bodós. Tudo ia em latas de leite
secas, essas eram as suas lancheiras! Saíam ainda com escuro, pois a escola era
longe! Pegavam a estrada e iam andando correndo, cantando e conversando.
Quando chegavam à escola, sempre atrasados, o sol já esquentando
o lombo, como dizia seu pai, a professora já estava dando tarefas, mas eram
bem recebidos por conta da distância em que moravam. Foi nessa escola que
Morgana recebeu as primeiras lições e estudou o alfabeto, ainda na velha
cartilha de ABC, tão temida por muitos e criticada hoje pelos pedagogos. Na sala
de aula, haviam alunos de várias idades, era uma turma mista, alguns estudavam
ainda as letras, enquanto os maiores faziam contas. A professora polivalente,
"coitada", tinha que dar conta de vários conteúdos e contextos
ao mesmo tempo. Hoje ainda existem esse tipo de escola, nos aceiros da
floresta, pelo interior do estado aqui no Acre.
Na hora do lanche comiam animadamente suas farofas
de ovos, de carne de sol, a Jabá, ou pão de arroz feito
com farinha de arroz; às onze horas retornavam ao caminho de volta para
casa. Ela até hoje recorda uma das brincadeiras que faziam nesse caminho de
volta, que era bater numa plantinha, a Mimosa Pudica (4), que havia na beira da
estrada e a chamavam de Maria - diziam eles:
- Maria, fecha a
porta que teu pai morreu!
Surpresa mesmo
ficou na primeira vez que viu a planta se fechar todinha, diante dos seus olhos
infantis e curiosos. Então pensou: as plantas são vivas de verdade, elas
se mechem! E os carrapichos? (5) Era uma festa! Brincavam da manja (6) e correndo,
os carrapichos grudavam nas suas roupas e até nos cabelos. Mas para aquelas
crianças tudo isso era festa, faziam até artes plásticas, verdadeira arte, com
aquelas bolinhas que grudavam nas roupas.
Chegava em casa já quase ao meio da tarde e pouco tempo
depois, já era hora de voltar de novo com sua avó, no caminho da mata para
a casa de seus tios, esperar outra vez, pela aula do dia
seguinte. Para sua vida de criança esses foram os melhores momentos com
sua avó, seu alicerce emocional, horas de aconchego, carinho e amor, e
ainda foram essas as melhores aventuras que viveu na sua infância,
nos confins da floresta da Amazônia, por conta de sua primeira escola.
As aventuras vividas na mata com a avó paterna e as primeiras experiências da escola, por toda a infância, renderam-lhe uma imaginação fértil, amor às estórias
fantasiosas e força vital para transpor as dificuldades que viriam a seguir com
a morte de sua amada avó, dona Noêmia, que falecera por uma febre comum
das áreas de mata, o Sezão, conhecido cientificamente como Malária
(7). Depois desse fato o cenário do aceiro da mata mudou trazendo
melancolia e tristeza no cair da tarde, pois a cruz e a sepultura, virou contraste com o lindo
arco íris que aparecia no céu.
Triste mesmo foi mudar depois para a cidade e
deixar sua amada avó lá enterrada no terreiro de casa, fincada
no chão feito árvore encantada e abandonada para sempre no aceiro da floresta,
mas lá era o seu lugar, a mata, onde viveu a sua vida inteira, como
seringueira, "mulher selvagem", “mulher onça” da mata, descendente de
nordestinos, forte e determinada a sobreviver, como todas as acreanas da
floresta.
Morgana aprendeu muito
cedo que até os fortes um dia morrem.
Fragmento do livro virtual, aqui neste blog, Memórias de Mariana, de Maze Oliver publicado
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